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Microcontos: Ecos de Um Relógio

Autor: Rafael Moratti

Sumário

1. A carta sem remetente

A primeira coisa que chegou naquela manhã foi o silêncio. Depois, o envelope.

O carteiro ergueu o rosto como quem pede desculpa e disse: “Não pesa nada, mas não é leve.” Afonso — restaurador de relíquias e colecionador de ruídos antigos — recebeu a carta com as duas mãos. O papel parecia frio, como se tivesse dormido no lado escuro da cidade.

Dentro, apenas uma folha com uma frase:

“Quando o tempo for você, devolva-me.”

A caligrafia era inclinada, atenta, de alguém que sabe escolher as pausas. Afonso sorriu com prudência e guardou a carta na gaveta de objetos duvidosos: uma moeda com duas faces, uma pequena chave sem fechadura, um botão de casaco que nunca caiu de casaco nenhum.

Na parede, o relógio herdado do avô marcava 09:17. Era uma peça caprichosa, com ponteiros em forma de pena e um vidro levemente manchado, como se respirasse por dentro. A cada meia hora, soltava um suspiro — pelo menos era assim que Afonso descrevia o som aos amigos, quando ainda tinha amigos para ouvir descrições.

Antes do almoço, o relógio parou. 09:17 se tornou uma repetição, um eco achado. Afonso girou a chave de corda, ajeitou o pêndulo, sussurrou uma ameaça doce — nada.

No verso da carta, em letra menor, apareceu um rabisco que antes não estava lá:

“Considere as falhas como portas.”

2. Três batidas na madeira

Nessa noite, a casa parecia um palco abandonado. As janelas rangiam frases velhas. Afonso abriu a gaveta, retirou a carta, a chave inútil e, por impulso, o botão. Colocou os três itens sobre a mesa, ao lado do relógio paralisado.

Às 03:03, o silêncio foi substituído por três batidas na madeira. Não na porta, não na janela. No tampo da mesa.

Tok. Tok. Tok.

Os objetos vibraram levemente, como se tivessem lembrado um nome. A mesma caligrafia apareceu no vidro do relógio, embaçando por dentro: “Entre pelos minutos.”

Afonso pegou uma lupa. Entre os numerais, um delicado risco dividia o 12 e o 1, como uma costura de luz. A chave sem fechadura coube exatamente ali — um gesto improvável, a precisão dos absurdos. Quando a girou, o ponteiro dos minutos tremeu, errou o caminho que aprendera e apontou para baixo, como se indicasse um degrau.

A casa cheirou a poeira recente. O ar ficou espesso, e um ruído de folhas viradas preencheu a sala. Afonso viu — não com os olhos de agora, mas com a lembrança dos olhos do avô — a cena de uma oficina antiga: mãos, óleo, o relógio ainda jovem. O avô dizia: “Relógios não contam horas. Escrevem horas.”

A frase voltou inteira. A caligrafia no vidro acrescentou outra linha:

“Se quer resposta, seja pergunta.”

Afonso respirou o bastante para errar. E errou com capricho.

Encaixou o botão onde faltava um pino do pêndulo, prendeu a carta entre o vidro e o mostrador, como quem devolve um segredo à vitrine, e tocou a madeira três vezes.

Tok. Tok. Tok.

O relógio recomeçou. Não em 09:18, como seria razoável, mas em 01:00. O som do tic-tac veio com um sotaque estranho, como se tivesse aprendido a falar noutro lugar. E cada vez que o ponteiro dos minutos avançava, palavras se formavam no vidro, aparecendo e sumindo como vapor:

“Lembre-se da sala sem janela.”
“Abandone o corredor que volta.”
“Procure o ruído que não teme o eco.”

Afonso entendeu pouco, mas a história parecia ter decidido que ele entendeu o suficiente.

3. O relógio que escrevia tempo

Os dias seguintes não obedeceram aos dias. Em certas tardes, a xícara soltava vapor antes da água ferver. Em certas manhãs, a sombra da estante chegava antes da luz da janela. Às 09:17 — sempre esse número — o relógio parava por um segundo e, nesse segundo, a casa parecia ouvir-se.

Afonso percebeu que o relógio escrevia no vidro não apenas frases, mas direções. Ele passou a copiá-las num caderno de capa azul e a segui-las com uma disciplina de quem não confia no próprio improviso.

Foi assim que chegou à sala sem janela: um quarto estreito, escondido atrás da biblioteca, que ele juraria não existir. A parede tinha a textura dos livros que se recusam a acabar. No centro, uma mesa baixa, com uma gaveta aberta. Dentro, o mesmo envelope, antes de chegar, dormindo um passado intacto.

O papel repetia a frase: “Quando o tempo for você, devolva-me.”

— E como se devolve o que só me empresta? — perguntou em voz alta.

O relógio respondeu do corredor: três batidas na madeira, três vezes.

Tok. Tok. Tok.

A caligrafia apareceu na superfície da mesa, sem tinta, como se a madeira lembrasse o caminho do risco:

“Diga o que não cabe em palavra.”

Afonso fechou a gaveta e voltou à sala principal. O relógio marcava 07:52, embora o sol tivesse decidido ser 16:00. Ele pousou as mãos no vidro, sentiu a frieza que não era do vidro, mas do antes do vidro. E disse:

— Volta.

O ponteiro dos minutos andou para trás com elegância de peixe. As vozes do corredor pareceram desfalar-se. Um cheiro de chuva antiga visitou o tapete. O relógio escreveu:

“Agora você me toca.”

O pêndulo cessou como quem respira fundo. O tique substituiu o taque, e a casa ficou com uma metade do som. No meio dessa ausência, Afonso ouviu os passos do avô atravessando um domingo que já não existia.

— Você demorou — disse o avô, sem boca, sem corpo, apenas a certeza de ter dito.

— O tempo não deixava — respondeu Afonso, que nunca tivera talento para respostas boas.

— O tempo não manda. Pede.

A caligrafia no vidro inclinou-se outra vez:

“Devolva-me quando souber pedir.”

Afonso separou a carta do mostrador, alisou o papel com delicadeza de quem escuta com as mãos e escreveu ao lado da frase original: “Volta.” Dobrou o envelope e, sem conseguir explicar a coragem, inseriu-o outra vez no risco entre o 12 e o 1. Girou a chave.

O relógio apagou — não a luz, mas a evidência de si. A madeira retomou a cor de árvore viva, e os numerais se recolheram ao canto da sala, tímidos. Afonso ficou olhando um retângulo de parede onde um relógio não era mais.

O carteiro bateu à porta.

— Entrega para o senhor Afonso.

No envelope, seu nome, sua letra, a data de ontem. Dentro, uma folha em branco que, ao toque, ficou morna. A mão dele, sem consultar o resto, escreveu sozinha:

“Quando você for o tempo, devolvo-me.”

Assinou com uma sigla que não reconheceu. E ainda assim era sua.

A casa respirou. No silêncio que veio, três batidas discretas atravessaram o rodapé do mundo.

Tok. Tok. Tok.

Na mesa, o caderno de capa azul fechou-se devagar, como se alguém tivesse terminado de ler.

E o relógio, que já não estava, escreveu onde não havia vidro:

“Continua.”